Textos
Carta para minha Mãe
A partir de ti me fiz inteira no mundo. Tarefa dura. Não fosse tu me alertares sobre a temperatura do sol, pensaria que tudo que ilumina só pode fazer bem. E mais, lembro de me sentir velha na infância. Sabias da firmeza que a vida exige. Lembro de cada prato de alface, espinafre, cenoura e livros que devorei. Te maldizia no travesseiro e sobre ele chorava o amargo destino de crescer. Hoje percebo teu real tamanho e me pergunto como tantos sobrevivem sem mãe. Tu me alertou sobre dias amargos, sobre dores não medicáveis. “O choro não é vergonha”, aprendi contigo. E ao andar pelas ruas desgastadas de solidariedade e de ternura, eu soluço a valer. Aprendi que não se atravessa o mar sobre as águas. É necessário afundar os pés. Tu me encorajou a esperar a onda. Tomei muita água. Me sinto hidratada, mãe. Hidratada de vida, de amor.
E para terminar, não temo o clichê.
Obrigada, com amor
Desirée
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A construção
A arte cega de moer os ossos
Chafurdei em mim o que podia
… e no mundo o que me faltava
Atravessei o rio sobre a corda bamba
Belisquei o abismo
Caminhei longas distâncias comendo pó
Olhei à frente, somente à frente
Qualquer vacilo voltava
Voltava para um lugar inteiro
Voltava para me abrigar na rotina
… e abandonava o sonho
Ai como eu obrei
Manhã, tarde e noite
Divagando, dormindo e acordada
Passei encaixando tijolos
Certo dia vislumbrei a casa
Ela estava nutrida de amor
Agora seria tarde para agonia
… e cedo para a certeza
Foi então, que decidi seguir desenhando a vida
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SobreVIVER
Sobre a mesa a espera
Sobre a cabeça o baú
Sobre o início a dúvida
Sobre a vida… é sobre a vida
Sobre o fazer a essência
Sobre a criação o improvável
Sobre o resultado o imponderável
Sobre a procura… constância
Sobre dar… é sobre dar
Sobre um jeito de estar no mundo
Sobre um jeito de falar
Sobre um jeito de amar… é sobre amar
Sobre contar histórias o desenho
Sobre o preto e branco a cor
Sobre nascer
Sobre morrer
É sobre VIVER
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Penetração
O mundo dormita
Meus ossos brindam pousados no colchão
A cada estalido fende a terra
Na poeira, lá vou
Ínfimo grão quicando o solo
Chacoalho até o mar
Noto o firmamento bordado por diminutas lanternas
Tatuíras rasgam a areia por onde desapareço
Da revolução marítima emerjo
Coração latejante
Susto e milagre
Eis a poesia
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Luxo
Alba envelheceu linda
A alma vinha-lhe à frente
Os anos acrescentaram-lhe frescor
Agora, era uma mulher transparente
Notava-se o amor dentro
Há anos tratava de aparar-se
Desprendeu-se das bugigangas que lhe pesavam a vida
Encantou-se com tudo que via pelo destino
Tratou de apaziguar o fogo sem perder as vontades
Tratou de rir dos seus enganos
Chorou a cada pedido do coração
Alba entregou-se inteira aos dias
Alinhavou as horas, os minutos e os segundos
Por fim, deu-se conta de unir os retalhos todos
Assuntou com sua bela colcha a aquecer-lhe o corpo
E sorriu a sentir-se alegre
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E
Arte é oração
Um código síncrono com o universo
Elo sigiloso entre amor e juízo
Encontro profundo
Dança de palavras agradecidas
Pintura de pedidos desesperados
Canto de exaltação
Desenho de mundos imaginosos
Arte é profecia para bendizer a passagem
Agasalho para o frio
Remédio para dor
Aclaração
Altar
Oferenda
Emancipação
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Do Alto
No topo da montanha
Há dias de longas
águas, há dias de
calor
Firme está a casa,
singela morada de gentes
À porta, o mirrado
cão espera o farnel
Há voos, piados, e
pequenos sonhos
lançados sobre o
horizonte
Delicadas arnicas
douram a encosta
O cume da montanha é
celeste morada de
anjos
Há fumaça, vento e um
agradável silêncio
O verde se derrama
até o rio
Caminho de sorrisos e
assombrosas caveiras
Descida de
aprendizes, subida de
operários
No pico da montanha
Há mugido, lágrima e
um azul imenso
Da terra, enormes
esmeraldas se
encompridam
A montanha é segredo
É vértice,
triângulo, flecha
Circunstância
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Não
A vida sempre a dizer não
Rindo pelas costas
E eu, São Judas, em oração
Me diga… se tudo no mundo começou com um sim
Andarei eu olhando a vida de viés?
O jogo é o mesmo, tem os tons da corte
Do meu canto estofado lanço olhares longos, não nego a indecência
Cá estou acima das enchentes, a salvo da miséria
Não posso desconsiderar as nuances perversas desse caldeirão
Há tantos atores felizes
Me coloquei fortemente na vida, abri minhas estruturas
Difícil é reparar no detalhe. Vivo e morro por ele
É fresta que parte a estrada, é peça que descortina o crime
É aresta que significa o homem
De lupa enxergo o morro a quilômetros do paraíso
A formiga a carregar o grão de cada dia
Os reis a colher da colher alheia
Sigo em oração São Tadeu
Não posso mudar, não posso negar
Não, não, não.
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