Textos

Passantes

Passantes

A vida vai às pressas a roer o tempo

A roer os sonhos e as imaginações 

A roer os ossos e a carne

A vida vai amplificar os soluços

Vai roubar a audição ao acrescentar orelhas maiores

Vai roubar o cheiro ao acrescentar um nariz avolumado

A vida agrega apêndices inúteis para surrupiar utilidades

E aos poucos nos tornamos inúteis e dispensáveis

A vida por fim nos coloca em suspensão 

A espera de esperar

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Eu danço

O mar dança. No vai e vem trança a areia, enquanto a lua abre clarão no breu.
Sagrada é a existência inundada pelo não-dito das águas, que em silêncio purifica a vida.
De leitosas pérolas o mar é bordado nas profundezas, como a alma que se espanta com um pequeno pássaro a piar no jardim. É preciso pretexto para a incerteza da vida. Também a crença e alguma ilusão. Nada é de fato se não cremos. Se não olhamos para o céu, de que servem as estrelas?
Os olhos carecem de ensino, de treino para avistar lonjuras. As mãos podem ofertar o coração. Se convertidas à liberdade tornam-se asas. Mantenho o ofício de ornar o espírito para sabotar a tristeza que me procura.
Danço para chamar a felicidade. Danço o corpo, danço a mão sobre o papel, como um rito de passagem. Ando a todo tempo à procura de mim.

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Carta para minha Mãe

A partir de ti me fiz inteira no mundo. Tarefa dura. Não fosse tu me alertares sobre a temperatura do sol, eu pensaria que tudo que ilumina só pode fazer bem. E mais, eu lembro de me sentir velha já na infância. Tu sabias da firmeza que a vida exige. Lembro de cada prato de alface, espinafre, cenoura e livros que devorei. Te maldizia no travesseiro e sobre ele chorava o amargo destino de crescer. Hoje percebo teu real tamanho e me pergunto como tantos sobrevivem sem mãe. Tu me alertou sobre os dias amargos, sobre as dores não medicáveis. O choro não é vergonha. Aprendi contigo. E ao andar pelas ruas desgastadas de solidariedade e de ternura, eu soluço a valer. Aprendi que não se atravessa o mar sobre as águas. É necessário afundar os pés. Tu me encorajou a esperar a onda. Tomei muita água. Me sinto hidratada, mãe. Hidratada de vida, de amor.
E para terminar, não temo o clichê.
Obrigada, com amor

Desirée

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A construção

A arte cega de moer os ossos
Chafurdei em mim o que podia
… e no mundo o que me faltava
Atravessei o rio sobre a corda bamba
Belisquei o abismo
Caminhei longas distâncias comendo pó
Olhei à frente, somente à frente
Qualquer vacilo voltava
Voltava para um lugar inteiro
Voltava para me abrigar na rotina
… e abandonava o sonho
Ai como eu obrei
Manhã, tarde e noite
Divagando, dormindo e acordada
Passei encaixando tijolos
Certo dia vislumbrei a casa
Ela estava nutrida de amor
Agora seria tarde para agonia
… e cedo para a certeza
Foi então, que decidi seguir desenhando a vida

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SobreVIVER

Sobre a mesa…a espera
Sobre a cabeça um baú
Sobre o início…a dúvida
Sobre a vida…é sobre a vida
Sobre o fazer… a essência
Sobre a criação… o improvável
Sobre o resultado… o imponderável
Sobre a procura.. constância
Sobre dar…é sobre dar
Sobre um jeito de estar no mundo
Sobre um jeito de falar
Sobre um jeito de amar…é sobre amar
Sobre contar histórias…o desenho
Sobre o preto e branco.. a cor
Sobre nascer
Sobre morrer
SobreVIVER

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Penetração

O mundo dormita
Meus ossos brindam pousados no colchão
A cada estalido erode a terra
Na poeira, lá vou
Ínfimo grão quicando o solo
Chacoalho até o mar
Noto o firmamento bordado por diminutas lanternas
Tatuíras rasgam a areia por onde desapareço
Da revolução marítima emerjo
Coração latejante
Susto e milagre
Eis a poesia

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Luxo

Alba envelheceu linda
A alma vinha-lhe à frente
Os anos acrescentaram-lhe frescor
Agora, era uma mulher transparente
Notava-se o amor dentro
Há anos tratava de aparar-se
Desprendeu-se das bugigangas que lhe pesavam a vida
Encantou-se com tudo que via pelo destino
Tratou de apaziguar o fogo sem perder as vontades
Tratou de rir dos seus enganos
Chorou a cada pedido do coração
Alba entregou-se inteira aos dias
Alinhavou as horas, os minutos e os segundos
Por fim, deu-se conta de unir os retalhos todos
Assuntou com sua bela colcha a aquecer-lhe o corpo
E sorriu a sentir-se alegre

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Ê

Arte é oração
Um código síncrono com o universo
Elo sigiloso entre amor e juízo
Encontro profundo
Dança de palavras agradecidas
Pintura de pedidos desesperados
Canto de exaltação
Desenho de mundos imaginosos
Arte é profecia para bendizer a passagem
Agasalho para o frio
Remédio para dor
Aclaração
Altar
Oferenda
Emancipação

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